quinta-feira, 22 de março de 2012

A escuridão me basta - Thomas Merton

"Senhor, é quase meia-noite e estou Te esperando na escuridão e no grande silêncio.
Lamento todos os meus pecados.
Não me deixe pedir mais do que ficar sentado na escuridão, 
sem acender alguma luz por conta própria, nem me abarrotar com os próprios pensamentos
 para preencher o vazio da noite na qual espero por Ti.
Deixa-me virar nada para a luz pálida e fraca dos sentidos, 
a fim de permanecer na doce escuridão da Fé pura.
Quanto ao mundo, deixa-me tornar-me para ele totalmente obscuro para sempre. 
Que eu possa, deste modo, por esta escuridão, chegar enfim à Tua claridade.
Que eu possa, depois de ter me tornado insignificante para o mundo, 
estender-me em direção aos sentidos infinitos, contidos em Tua paz e Tua glória.
Tua claridade é minha escuridão. 
Eu não conheço nada de Ti e por mim mesmo nem posso imaginar como fazer para Te conhecer.
Se eu te imaginar, estarei errado.Se Te compreender, estarei enganado.
Se ficar consciente e certo que Te conheço, serei louco.
A escuridão me basta".

 Poema de Thomas Merton  (Publicado no livro "Diálogos com o silêncio")


 

terça-feira, 20 de março de 2012

Viés - André Egg

A encarnação de Deus possui um outro viés além do esvaziamento e, portanto, fragilização do todo-poderoso. Deus nascido gente, Deus bebê, com a fralda cheia, Deus adolescente desengonçado, repleto de hormônios e espinhas, Deus chorando e sofrendo, rindo e dançando, comendo e bebendo, irado, com sono, cansado e suado, Deus com gases, é a absoluta e inegável redenção do corpo.

De forma diametralmente oposta a mentalidade herdada dos gregos, que considera o corpo vulgar, um constrangimento que a alma é obrigada a suportar, Deus opta por possuir um corpo humano, voluntariamente lambuza-se na carne, elevando o corpo à condição de sagrado. Deus, fazendo-se homem, fez dos homens deuses. Fomos irremediavelmente contaminados pelo santo, não somente em nossos sentimentos, em nossa alma, em nossas virtudes, mas no corpo, na pele, no pêlo, na saliva.

Por isso a salvação, em Cristo, não é mais destinada tão somente a almas, mas a corpos. Por isso, na lógica de Jesus, abraçar os que têm fome, sede e frio, os que estão presos, esquecidos ou sozinhos, é como abraçar a Deus. Por isso beber e dançar numa festa de casamento é como festejar com Deus.

Enquanto a religião negar a carne e seguir correndo atrás de almas, enquanto o corpo continuar sendo um constrangimento dentro dos templos, enquanto toda noção de prioridade e de urgência ‘evangelística’ da igreja seguir sendo o céu, a encarnação de Cristo seguirá sendo um conceito a espera de ser praticado. E é natural que seja assim, porque toda religião anda de mãos dadas com o poder e é, portanto, absolutamente incompatível com qualquer proposta prática de fragilização.

É preciso, a todo custo, manter o cetro em punho.
 
http://atrilha.blogspot.com.br/2010/06/vies.html