“Deus
nos livre de um Brasil evangélico”, diz o religioso Ricardo Gondim,
crítico dos movimentos neopentecostais. Por Gerson Freitas Jr. Foto:
Olga Vlahou
“Deus nos livre de um Brasil evangélico.” Quem afirma é um pastor, o
cearense Ricardo Gondim. Segundo ele, o movimento neopentecostal se
expande com um projeto de poder e imposição de valores, mas em seu
crescimento estão as raízes da própria decadência. Os evangélicos, diz
Gondim, absorvem cada vez mais elementos do perfil religioso típico dos
brasileiros, embora tendam a recrudescer em questões como o aborto e os
direitos homossexuais. Aos 57 anos, pastor há 34, Gondim é líder da
Igreja Betesda e mestre em teologia pela Universidade Metodista. E
tornou-se um dos mais populares críticos do mainstream evangélico, o que
o transformou em alvo. “Sou o herege da vez”, diz na entrevista a
seguir.
CartaCapital: Os evangélicos tiveram papel
importante nas últimas eleições. O Brasil está se tornando um país mais
influenciável pelo discurso desse movimento?
Ricardo Gondim: Sim, mesmo porque, é notório o
crescimento do número de evangélicos. Mas é importante fazer uma
ponderação qualitativa. Quanto mais cresce, mais o movimento evangélico
também se deixa influenciar. O rigor doutrinário e os valores típicos
dos pequenos grupos se dispersam, e os evangélicos ficam mais próximos
do perfil religioso típico do brasileiro.
CC: Como o senhor define esse perfil?
RG: Extremamente eclético e ecumênico. Pela primeira
vez, temos evangélicos que pertencem também a comunidades católicas ou
espíritas. Já se fala em um “evangelicalismo popular”, nos moldes do
catolicismo popular, e em evangélicos não praticantes, o que não existia
até pouco tempo atrás. O movimento cresce, mas perde força. E por isso
tem de eleger alguns temas que lhe assegurem uma identidade. Nos Estados
Unidos, a igreja se apega a três assuntos: aborto, homossexualidade e a
influência islâmica no mundo. No Brasil, não é diferente. Existe um
conservadorismo extremo nessas áreas, mas um relaxamento em outras. Há
aberrações éticas enormes.
CC: O senhor escreveu um artigo intitulado “Deus nos Livre de um Brasil Evangélico”. Por que um pastor evangélico afirma isso?
RG: Porque esse projeto impõe não só a
espiritualidade, mas toda a cultura, estética e cosmovisão do mundo
evangélico, o que não é de nenhum modo desejável. Seria a talebanização
do Brasil. Precisamos da diversidade cultural e religiosa. O movimento
evangélico se expande com a proposta de ser a maioria, para poder cada
vez mais definir o rumo das eleições e, quem sabe, escolher o presidente
da República. Isso fica muito claro no projeto da Igreja Universal. O
objetivo de ter o pastor no Congresso, nas instâncias de poder, é o de
facilitar a expansão da igreja. E, nesse sentido, o movimento é
maquiavélico. Se é para salvar o Brasil da perdição, os fins justificam
os meios.
CC: O movimento americano é a grande inspiração para os evangélicos no Brasil?
RG: O movimento brasileiro é filho direto do
fundamentalismo norte-americano. Os Estados Unidos exportam seu american
way oflife de várias maneiras, e a igreja evangélica é uma das
principais. As lideranças daqui leem basicamente os autores
norte-americanos e neles buscam toda a sua espiritualidade, teologia e
normatização comportamental. A igreja americana é pragmática, gerencial,
o que é muito próprio daquela cultura. Funciona como uma agência
prestadora de serviços religiosos, de cura, libertação, prosperidade
financeira. Em um país como o Brasil, onde quase todos nascem católicos,
a igreja evangélica precisa ser extremamente ágil, pragmática e
oferecer resultados para se impor. É uma lógica individualista e
antiética. Um ensino muito comum nas igrejas é a de que Deus abre portas
de emprego para os fiéis. Eu ensino minha comunidade a se desvincular
dessa linguagem. Nós nos revoltamos quando ouvimos que algum político
abriu uma porta para o apadrinhado. Por que seria diferente com Deus?
CC: O senhor afirma que a igreja evangélica brasileira está em decadência, mas o movimento continua a crescer.
RG: Uma igreja que, para se sustentar, precisa de
campanhas cada vez mais mirabolantes, um discurso cada vez mais
histriônico e promessas cada vez mais absurdas está em decadência. Se
para ter a sua adesão eu preciso apelar a valores cada vez mais
primitivos e sensoriais e produzir o medo do mundo mágico,
transcendental, então a minha mensagem está fragilizada.
CC: Pode-se dizer o mesmo do movimento norte-americano?
RG: Muitos dizem que sim, apesar dos números. Há um
entusiasmo crescente dos mesmos, mas uma rejeição cada vez maior dos que
estão de fora. Hoje, nos Estados Unidos, uma pessoa que não tenha sido
criada no meio e que tenha um mínimo de senso crítico nunca vai se
aproximar dessa igreja, associada ao Bush, à intolerância em todos os
sentidos, ao Tea Party, à guerra.
CC: O senhor é a favor da união civil entre homossexuais?
RG: Sou a favor. O Brasil é um país laico. Minhas
convicções de fé não podem influenciar, tampouco atropelar o direito de
outros. Temos de respeitar as necessidades e aspirações que surgem a
partir de outra realidade social. A comunidade gay aspira por
relacionamentos juridicamente estáveis. A nação tem de considerar essa
demanda. E a igreja deve entender que nem todas as relações
homossensuais são promíscuas. Tenho minhas posições contra a
promiscuidade, que considero ruim para as relações humanas, mas isso não
tem uma relação estreita com a homossexualidade ou heterossexualidade.
CC: O senhor enfrenta muita oposição de seus pares?
RG: Muita! Fui eleito o herege da vez. Entre outras
coisas, porque advogo a tese de que a teologia de um Deus títere,
controlador da história, não cabe mais. Pode ter cabido na era medieval,
mas não hoje. O Deus em que creio não controla, mas ama. É incompatível
a existência de um Deus controlador com a liberdade humana. Se Deus é
bom e onipotente, e coisas ruins acontecem, então há algo errado com
esse pressuposto. Minha resposta é que Deus não está no controle. A
favela, o córrego poluído, a tragédia, a guerra, não têm nada a ver com
Deus. Concordo muito com Simone Weil, uma judia convertida ao
catolicismo durante a Segunda Guerra Mundial, quando diz que o mundo só é
possível pela ausência de Deus. Vivemos como se Deus não existisse,
porque só assim nos tornamos cidadãos responsáveis, nos humanizamos,
lutamos pela vida, pelo bem. A visão de Deus como um pai todo-poderoso,
que vai me proteger, poupar, socorrer e abrir portas é infantilizadora
da vida.
CC: Mas os movimentos cristãos foram sempre na direção oposta.
RG: Não necessariamente. Para alguns autores, a
decadência do protestantismo na Europa não é, verdadeiramente, uma
decadência, mas o cumprimento de seus objetivos: igrejas vazias e
cidadãos cada vez mais cidadãos, mais preocupados com a questão dos
direitos humanos, do bom trato da vida e do meio ambiente.
27.04.2011 08:48
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