http://luizfelipeponde.wordpress.com/2011/07/28/entrevista-de-ponde-para-a-veja-13-07-2011/
sexta-feira, 9 de agosto de 2013
quarta-feira, 24 de julho de 2013
Por que eu nunca me converteria (Ricardo Gondim)
Pois que vantagem há em suportar
açoites recebidos por terem cometido o mal? Mas se vocês suportam o
sofrimento por terem feito o bem, isso é louvável diante de Deus.
I Pe 2:20
I Pe 2:20
Se alguns frequentassem determinadas igrejas eles jamais se
converteriam ao cristianismo. Em certas instituições religiosas há
desprezo pelo pensar. Os que sentem necessidade de saber o porquê das
coisas e rejeitam a possibilidade de se sentirem indoutrinados, goela abaixo, sem
que tenham a oportunidade de argumentar, criam repulsa ao fenônemo
religioso que se alastra pelo Brasil. Muitos não se converteriam no
ambiente que diz: Creia porque estou dizendo; não especule, não questione, aceite apenas. Um
lugar onde se exige obediência cega, onde é proibido o exercício do bom
senso, pode crescer em membresia, ser bem sucedido financeiramente e
sofrer, inclusive, cooptação das forças políticas, mas jamais pode
considerar-se legitimamente evangélico. Se você foi a uma
dessas igrejas e não se converteu, parabéns. Você tem toda razão de
reagir como reagiu. Eu também não me converteria.
Igreja que apequena debate, que se volta para questiúnculas e enfatiza pormenores irrelevantes do tipo
mulher deve usar cabelo comprido ou curto? pode pintar as unhas com
esmalte vermelho, azul ou de cor nenhuma? tem permissão de usar calças
compridas? Além do debate em si ser ridículo, o mundo nunca mudará
através das rédeas curtas desse legalismo coercitivo, dessa demagogia
farisaica ou dessa piedade fundamentalista. E se existe um Deus
preocupado com tão intrincada rede de pode-não-pode, melhor
mesmo nem se aproximar dele. Como imaginar Jesus morrendo na cruz, e os
mártires da igreja adubando com seu sangue o solo de Roma para que a
pauta mais relevante dos seguidores de Jesus fosse essa?
Converter-se à fé se tornou crescentemente complicado nos ambientes
piegas, das frases prontas, dos chavões sovados e reciclados que jamais
favorecem a experiência numinosa do sagrado – na melhor das hipóteses, produzem alucinação.
A pressão do mercado apressa os pastores na busca por projeção. Esse
anseio gera comunidades simplistas. A complexidade da vida, com todos as
implicações que as escolhas trazem, não comportam respostas simplistas.
Um jargão preocupante se difundiu entre os neopentecostais: Está amarrado em nome de Jesus! Essa amarração pretendia
conter desde as investidas de Lúcifer às situações corriqueiras que nos
afligem como gripe, trânsito engarrafado e problemas na justiça.
(todavia, alguns divulgadores da frase não conseguiram evitar a cadeia)
Uma pitada do que acorre na enorme maioria das igrejas que se pretendem evangélicas dá ideia do grau de rejeição que elas podem gerar:
Todos a uma só voz digam: Amém.
Foi fraco ou não ouvi direito? Quero um sonoro Amém.
Todos, mais alto e pausado para afugentar o diabo, gritem Gloria a Deus.
Vou orar para que Deus coloque um círculo de anjos num raio de cinco quilômetros e o diabo não vai se aproximar.
Diga para quem está do seu lado: o ambiente está limpo, agora podemos louvar a Deus.
Evangelho é simples sem carecer desses artifícios simplistas e toscos.
Ora, quem se sente alegre não precisa gritar para potencializar sua
felicidade; e o triste não mudará seu estado melancólico por meio de
catarse temporária. Culto a Deus não depende de que todas as pessoas
sorriam. Não há erro em estar abatido. Higienizar o ambiente para que o
diabo não perturbe é tão medieval que chega a constranger. Essas
técnicas de manipulação de massas se evidenciam em cada louvorzão,
em cada conferência profética em cada congresso pentecostal. Tal
suspensão temporária do senso crítico causa espécie por vulnerabilizar o
povo a inescrupulosos mercadejadores do sagrado. Em muitos
ajuntamentos, o pobre é extorquido até o último centavo do que possui
nos bolsos ou na conta bancária. O resultado é que o Brasil já tem
líderes de igrejas donos de aviões a jato, bancos, redes de rádio e
televisão; alguns com cacife para eleger senadores, negociar comissões
no Congresso e apontar o candidato à vice presidência de República.
Nesse embalo, o projeto teocrático deixa de parecer impossível e, claro,
preocupa.
A pergunta é inevitável: Então, por quais cargas d’água você se converteu e por que eu deveria me converter?
Converti-me porque a mensagem que me apresentaram soou racional e
lógica o suficiente para satisfazer o meu intelecto e poderosa
espiritualmente para impactar a minha vida. Eu cri invadido pela Graça. O
Evangelho também indicou o caminho para algumas perguntas que eu já
guardava: Deus? Bem? Maldade? Vida? Quem sou eu? Por que estou aqui?
Se na filosofia naturalista e no cientifismo moderno, eu era apenas
um acidente cósmico, se no sistema oriental hindu e budista, mera
emanação do todo divino – panteísmo – e se no espiritismo kardecista,
espírito aprisionado a um corpo, cumprindo a lei do karma, a mensagem de
Jesus me soou contundente, bonita e nobre: Eu sou a imagem de Deus que é
amor. Ele me chamou de amigo, irmão, filho.
A resposta cristã para estupros, tráfico de drogas, clínicas
psiquiátricas abarrotadas, embora não seja uniforme, mas cheia de
controversias, me bastou. Quanto mais me aprofundei nas questões da
justiça e da denúncia do pecado sistêmico que perpetua a miséria, eu vi
que o número de opiniões e era proporcional ao número de denominações e
escolas teológica. Os apontamentos cristãos para a solução do maior de
todos os enígmas: Por que sofre o justo? eram conflitantes.
Contudo, nesse emaranhado de argumentos a mensagem do Sermão do Monte me
abalou. As palavras ali registradas me pareceram as mais humanas e mais
desafiadoras que eu lera. Se no conceito oriental o mal e o bem se
fundem numa só realidade, se no conceito espírita o mal se liga ao
aperfeiçoamento, no que entendi do ensino de Jesus, o mal extrapola
todas as abordagens. Ele tem que ser combatido. O mal decorre da
liberdade. Fomos criados por Deus para a liberdade. Muitas vezes nos
valemos dessa vocação para destruir. O mal é um acinte, jamais tolerado
ou compactuado por Deus que interpela, sem cessar, homens e mulheres
para enfrentarem todas as formas de antivida como suas mãos, pés e boca.
Deus é amor. Bondade existe no universo não como acidente, mas como
intenção de um Deus eternamente amoroso e justo. João afirmou em sua
epístola universal que todo aquele que ama é nascido de Deus.
No amor ao pobre, não no cerimonialismo que exalta a liturgia,
encontramos o rosto de Deus. No amor ao excluído, não no dogmatismo que
glorifica a doutrina, somos tocados pelo divino. No amor ao estranho – o
estrangeiro – não no institucionalismo, nos colocamos no caminho da
verdade.
Converti-me porque tive a felicidade de ser anterior ao besteirol que se alastrou no movimento evangélico brasileiro nas últimas décadas; converti-me
porque cri no Deus que amou o ser humano de tal meneira que não hesitou
em continuar querendo bem mesmo diante do sacrifício de seu Unigênito –
Jesus Cristo. Continuo no caminho, apesar de não ter alcançado resposta
final e decisiva para todos os meus questionamentos – e isso é muito
bom. Sinto-me ainda devedor ao projeto de vida que ele propôs. Continuo a
desejá-lo, sabendo que nesse caminho encontro vida eterna.
Soli Deo Gloria
http://www.ricardogondim.com.br/estudos/por-que-eu-nunca-me-converteria/
sexta-feira, 5 de julho de 2013
O operário em construção
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
(Vinícius de Moraes)
http://www.viniciusdemoraes.com.br/site/article.php3?id_article=206
terça-feira, 2 de julho de 2013
terça-feira, 25 de junho de 2013
Aprender (Tanlan)
Coloque a culpa na história
Nos erros que o passado cometeu
Coloque a culpa nos reis de agora
Coloque a culpa no estado
Ou mesmo em tudo que é religião
Coloque a culpa no caos do acaso
Tanta gente já morreu
Sem nunca viver
E a razão já se perdeu
Sem nunca saber
Quando vamos aceitar
Todos temos tanto pra melhorar
Quando vamos entender
Antes de mudar
Temos que aprender
Alguém me mostre um alívio
Vivemos numa grande confusão
Como acabar com um problema antigo
Não sabemos nem viver
Nada é o que parece ser
Não sabemos nem porque
Matar ou morrrer
Quando vamos aceitar
Todos temos tanto pra melhorar
Quando vamos entender
Antes de mudar
Temos que aprender a amar
sexta-feira, 21 de junho de 2013
Até quando? (Gabriel O Pensador)
Não adianta olhar pro céu
Com muita fé e pouca luta
Levanta aí que você tem muito protesto pra fazer
E muita greve, você pode, você deve, pode crer
Não adianta olhar pro chão
Virar a cara pra não ver
Se liga aí que te botaram numa cruz e só porque Jesus
Sofreu não quer dizer que você tenha que sofrer!
Até quando você vai ficar usando rédea?!
Rindo da própria tragédia
Até quando você vai ficar usando rédea?!
Pobre, rico ou classe média
Até quando você vai levar cascudo mudo?
Muda, muda essa postura
Até quando você vai ficando mudo?
muda que o medo é um modo de fazer censura
Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!)
Até quando vai ficar sem fazer nada?
Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!)
Até quando vai ser saco de pancada?
Você tenta ser feliz, não vê que é deprimente
O seu filho sem escola, seu velho tá sem dente
Cê tenta ser contente e não vê que é revoltante
Você tá sem emprego e a sua filha tá gestante
Você se faz de surdo, não vê que é absurdo
Você que é inocente foi preso em flagrante!
É tudo flagrante! É tudo flagrante!!
A polícia
Matou o estudante
Falou que era bandido
Chamou de traficante!
A justiça
Prendeu o pé-rapado
Soltou o deputado
E absolveu os PMs de Vigário!
A polícia só existe pra manter você na lei
Lei do silêncio, lei do mais fraco
Ou aceita ser um saco de pancada ou vai pro saco
A programação existe pra manter você na frente
Na frente da TV, que é pra te entreter
Que é pra você não ver que o programado é você!
Acordo, não tenho trabalho, procuro trabalho, quero trabalhar
O cara me pede o diploma, não tenho diploma, não pude estudar
E querem que eu seja educado, que eu ande arrumado, que eu saiba falar
Aquilo que o mundo me pede não é o que o mundo me dá
Consigo um emprego, começa o emprego, me mato de tanto ralar
Acordo bem cedo, não tenho sossego nem tempo pra raciocinar
Não peço arrego, mas onde que eu chego se eu fico no mesmo lugar?
Brinquedo que o filho me pede, não tenho dinheiro pra dar!
Escola! Esmola!
Favela, cadeia!
Sem terra, enterra!
Sem renda, se renda! Não! Não!!
Muda que quando a gente muda o mundo muda com a gente
A gente muda o mundo na mudança da mente
E quando a mente muda a gente anda pra frente
E quando a gente manda ninguém manda na gente!
Na mudança de atitude não há mal que não se mude nem doença sem cura
Na mudança de postura a gente fica mais seguro
Na mudança do presente a gente molda o futuro!
Até quando você vai ficar levando porrada,
até quando vai ficar sem fazer nada
Até quando você vai ficar de saco de pancada?
Até quando?
Com muita fé e pouca luta
Levanta aí que você tem muito protesto pra fazer
E muita greve, você pode, você deve, pode crer
Não adianta olhar pro chão
Virar a cara pra não ver
Se liga aí que te botaram numa cruz e só porque Jesus
Sofreu não quer dizer que você tenha que sofrer!
Até quando você vai ficar usando rédea?!
Rindo da própria tragédia
Até quando você vai ficar usando rédea?!
Pobre, rico ou classe média
Até quando você vai levar cascudo mudo?
Muda, muda essa postura
Até quando você vai ficando mudo?
muda que o medo é um modo de fazer censura
Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!)
Até quando vai ficar sem fazer nada?
Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!)
Até quando vai ser saco de pancada?
Você tenta ser feliz, não vê que é deprimente
O seu filho sem escola, seu velho tá sem dente
Cê tenta ser contente e não vê que é revoltante
Você tá sem emprego e a sua filha tá gestante
Você se faz de surdo, não vê que é absurdo
Você que é inocente foi preso em flagrante!
É tudo flagrante! É tudo flagrante!!
A polícia
Matou o estudante
Falou que era bandido
Chamou de traficante!
A justiça
Prendeu o pé-rapado
Soltou o deputado
E absolveu os PMs de Vigário!
A polícia só existe pra manter você na lei
Lei do silêncio, lei do mais fraco
Ou aceita ser um saco de pancada ou vai pro saco
A programação existe pra manter você na frente
Na frente da TV, que é pra te entreter
Que é pra você não ver que o programado é você!
Acordo, não tenho trabalho, procuro trabalho, quero trabalhar
O cara me pede o diploma, não tenho diploma, não pude estudar
E querem que eu seja educado, que eu ande arrumado, que eu saiba falar
Aquilo que o mundo me pede não é o que o mundo me dá
Consigo um emprego, começa o emprego, me mato de tanto ralar
Acordo bem cedo, não tenho sossego nem tempo pra raciocinar
Não peço arrego, mas onde que eu chego se eu fico no mesmo lugar?
Brinquedo que o filho me pede, não tenho dinheiro pra dar!
Escola! Esmola!
Favela, cadeia!
Sem terra, enterra!
Sem renda, se renda! Não! Não!!
Muda que quando a gente muda o mundo muda com a gente
A gente muda o mundo na mudança da mente
E quando a mente muda a gente anda pra frente
E quando a gente manda ninguém manda na gente!
Na mudança de atitude não há mal que não se mude nem doença sem cura
Na mudança de postura a gente fica mais seguro
Na mudança do presente a gente molda o futuro!
Até quando você vai ficar levando porrada,
até quando vai ficar sem fazer nada
Até quando você vai ficar de saco de pancada?
Até quando?
segunda-feira, 1 de abril de 2013
Trecho do livro "O Evangelho Maltrapilho" - Brennan Manning
Nosso
afã de impressionar a Deus, nossa luta pelos méritos de estrelas
douradas, nossa afobação por tentar consertar a nós mesmos ao mesmo
tempo em que escondemos nossa mesquinharia e chafurdamos na culpa são
repugnantes para Deus e uma negação aberta do evangelho da graça. Nossa
abordagem da vida cristã é tão absurda quanto o jovem que depois de
receber a sua licença de encanador foi levado para ver as cataratas do
Niágara. Ele estudou-as por um minuto e depois disse: "Acho que tenho
como consertar isso".
"O Evangelho Maltrapilho" - Brennan Manning
terça-feira, 19 de março de 2013
A igrejização da sociedade (Paulo Brabo)
Houve tempo em que o mundo era um deserto, e quem encontrava uma
igreja encontrava um tesouro. Hoje em dia, quando ninguém tem como
ignorar o mal que a igreja institucional perpetrou e permitiu
ao longo dos séculos, pode ser fácil ignorar que ao longo de todo esse
tempo a igreja permaneceu, a seu próprio modo ambíguo (porque
institucional) um refúgio e um conforto – num tempo em que essas
coisas eram consideravelmente mais raras e mais caras do que
no nosso.
Por quase dois milênios a igreja foi, no ocidente, o único lugar em
que gente de todos os sexos, raças e níveis sociais podia ser
concebivelmente vista debaixo do mesmo teto ao mesmo tempo. Homens e
mulheres, camponeses e magistrados, residentes e
estrangeiros, ricos e pobres fazendo alguma coisa juntos?
Oficialmente? Em público? Só se fosse na igreja. É claro que valiam e
se reencenavam, em sua maior parte, as diferenças de tratamento e
as distâncias sociais do mundo lá fora, mas incrivelmente todos os
joelhos se dobravam diante da mesma ideia.
A seu modo capenga e durante toda uma era, portanto, a igreja
mostrou-se capaz de oferecer um senso de pertença àqueles que não
podiam esperar encontrar absolutamente qualquer outro espaço
social que se mostrasse disposto a acolhê-las. Não é inconcebível
que a persistência e a proeminência da igreja como “lugar para
todos” tenha semeado no coração dos homens, num processo que pode ter
durado toda a era cristã, a noção de direitos humanos universais.
É lógico que a igreja formal não só recebia as muitas
recompensas dessa unanimidade, mas exigia também um preço, a
total conformidade de comportamento e de opinião.
O problema e o fascínio de uma instituição estão em que o seu
preço é também a sua recompensa: quando mais conformado e engajado
você se mostra, mais inabalável e compensador será o senso de
identidade gerado pela sua experiência – e menor o risco de você
sentir-se tentado a questionar a validade da instituição ou da
sua participação nela.
Curiosamente, esse efeito de reforço da experiência
eclesiástica mostrou-se mais importante e irresistível quando a
igreja começou a ser seriamente questionada pelo mundo fora das
suas portas.
A curva de secularização da sociedade começou a alçar-se nos séculos XVIII e XIX, mas seu desenho ficou nítido e seu trajeto completo somente no século XX.
E precisamente quando o mundo começou a duvidar
apaixonadamente de tudo que a igreja considerava certo e
importante, o mecanismo de reforço da experiência eclesiástica
mostrou-se mais lubrificado e eficaz.
Você podia passar uma semana difícil entre gente incrédula que
discordava estrepitosamente de todas as suas escolhas, renúncias
e prioridades, mas o domingo estava ali para reacender a sua fé.
Semanalmente a igreja se mostrava pronta a exercer a sua função de
máquina de reforçar as suas crenças, restaurando desse modo o seu
senso de identidade (e com isso a sua motivação para continuar).
A experiência eclesiástica nesse período deixou de ter muito a
ver com o conteúdo da fé e passou a concentrar-se na premiação da
participação. A reunião de adoração teve de se tornar muito
diferente, uma experiência muito mais satisfatória em termos
sensoriais, emocionais e sociais do que tinha sido por mil anos;
não devido a qualquer compromisso com a ortodoxia, mas de modo a
maximizar os mecanismos de reforço inerentes à participação na
instituição.
Todos se reuniam, se abraçavam, cantavam canções doces e
pungentes, choravam juntos a clara incompreensão do mundo e
davam tapinhas nas costas uns dos outros por resistirem bravamente
às tentações da liberdade. Confetes eram jogados por todos sobre
todos, as próximas datas e metas de venda eram reforçadas e todos
partiam para a semana no deserto com um senso de pertença revigorado.
Você saía dali inabalável, imbatível, unstoppable,
inteiramente pronto para resistir ao impacto de alguém que
discordasse de você. E saía também ignorante de que encontrar
alguém que discorda de você pode ser a coisa mais saudável,
apaixonante e curativa que pode acontecer a qualquer um.
O mundo está bastante secular para que a maioria das pessoas
concorde comigo que ninguém deveria ter de viver desse modo:
manipulado por recompensas que você também oferece a outros na
mesma condição e que por sua vez servem também para manipulá-los;
aterrorizado diante da independência de quem discorda de você
porque simplesmente existindo ela coloca em risco o seu sentimento
de identidade.
Mas no momento em que a curva da secularização estava completa e
parecia que se aproximava o dia em que todos caminharíamos de
modo consciente e responsável por esta terra, sem a necessidade
de mecanismos concorrentes de validação contínua, entrou em
cena a internet – e quando a internet ficou pronta completava-se
também o processo de igrejização da sociedade.
Em sua presente versão “social” a internet promove a
igrejização da experiência com uma eficácia que a própria
igreja não seria capaz de sonhar. Os velhos mecanismos de validação e
de reforço encontraram terreno perfeito para se instalar e
multiplicar: primeiro no salão árido dos blogs, dos powerpoints e
das mensagens encaminhadas de e-mail, mas mais recentemente nas
camas confortáveis do twitter e do facebook.
Nos velhos tempos as pessoas tinham de esperar o domingo para a
sua sessão semanal de reforço e premiação; hoje o reforço é
dispensado diretamente na veia, em modo streaming/transmissão contínua.
Enfim: a internet permite que você conviva sem pausa e sem
interferência com a opinião e com a aprovação de gente que você
escolheu a dedo porque pensa como você. 24 horas por dia. 7 dias por
semana. Tolerância zero.
Aquele tiozinho que você adicionou distraidamente ou
resignadamente no facebook: quando ele ousar manchar o seu mural
com uma mensagem cujo teor
político-filosófico-teológico-estético-musical-desportivo-
sexual que você não aprova, o que resta fazer? Tratar de excluir o
cara, ou pelo menos desinscrever-se do conteúdo dele, de modo a nunca
mais ter de se submeter a uma opinião diversa da sua. Não tenho
conta no facebook, mas se tivesse eu faria a mesma coisa,
especialmente porque as pessoas estão raramente certas: isto é, é
irritantemente comum que discordem de mim.
O facebook é este mundo ideal em que você só precisa conversar
com seus “amigos”, ganhando ao mesmo tempo o privilégio de que
poucos reis efetivamente desfrutaram, o de poder calar todas as
vozes dissidentes.
O paradoxo é que a experiência da internet “social” acaba nos
incentivando a mergulhar cada vez mais doentiamente, de modo
infantil mas também irresistível, em nós mesmos. Temos mais
“contatos” do que nunca, mas a operação da coisa garante que
terminaremos por consumir apenas a informação que reforça
aquilo em que nós mesmo já cremos.
Para dizer de outro modo, a internet e sua onipresença tornou a
experiência da igreja portátil, no sentido em que posso sentir a
cada instante a companhia e a aprovação de gente que compartilha
da minha visão de mundo. Meu mural do facebook é um espaço
aparentemente rico, vivo e diversificado, e provê evidência
inequívoca da quantidade de gente que me estima e que me aceita como
sou – mas trata-se de um espaço criado, desenvolvido e mantido de
modo a permanecer livre de verdadeira discussão e de
pensamentos discordantes. Você parece estar ouvindo uma
infinidade de vozes, mas com 900 amigos falando sem trégua no seu
mural você está apenas galvanizando aquilo em que você acredita: está ouvindo apenas a sua própria voz.
E já que você recompensa os outros do mesmo modo que eles
recompensam você, a tendência é que a opinião de vocês fique cada
vez mais polarizada em relação ao mundo lá fora. Não faz diferença
se você é cristão ou ateu, hetero ou gay, de direita ou de esquerda: a
internet social vai prover o senso de identidade e de ultraje de que
você precisa para poder ignorar ou vencer a ameaça dos seus
antagonistas.
Precisamente como o cristão que saía do culto de domingo com o
seu senso de identidade/alienação fortalecido, o facebook, o
twitter e seus amigos provém esse pano de fundo que nos permite
atravessar intocados a inconveniente experiência do mundo real
— trabalho, ônibus, metrô, calçada, restaurante, táxi, ricos e
pobres, nordestinos e yuppies, comunistas e empresários,
mendigos e boçais, gente protestante ou de candomblé. Caminhamos
inabaláveis em meio a um oceano de desconhecidos que não nos
compreenderiam e que não queremos compreender, porque
trazemos a nossa igreja dentro de nós. Fechados cada um no seu
mundo, celular em punho, estamos para todos os efeitos inteiramente
livres de interações embaraçosas e não-antecipadas com gente que
não escolhemos explicitamente aprovar.
Ao mesmo tempo, não é preciso ponderar muito para entender que
gastamos cada vez menos tempo com amigos de carne e osso. É quase
covardia recorrer ao ibope, mas as pesquisas concordam com o
óbvio: que gastamos menos tempo com conversas e encontros
informais do que fazíamos há dez, vinte anos. Nunca gastou-se tanto
tempo com entretenimento, exercício e transporte e tão pouco com
festas, bares, jogos, peladas, passeios, saraus, luaus, bailes,
banquetes, noites de São João, rodas de samba. Piqueniques, alguém
lembra do último? Receber amigos em casa, essas coisas do século XIII.
Qual foi a última vez que um amigo de carne e osso apresentou você a uma pessoa de carne e osso?
Pelo menos, no tempo da supremacia da igreja, o corpo-a-corpo
sem confortos do mundo real nos forçava a enfrentar uma maior
diversidade de valores, interesses e de opiniões. No universo
estendido do trabalho, da escola ou da vizinhança, e apesar de toda
a nossa cautela, amigos se impunham e nos conquistavam mesmo que
não quiséssemos. Mesmo quando, absurdamente, pensavam e agiam
como jamais faríamos nós mesmos.
Quem perde com essa ausência de interação é você, meu velho, sou
eu. Tendemos todos ao circular, tendemos todos à esterilidade, e
nossos círculos de confirmação nos fazem menores em vez de nos
fazer crescer.
Se queremos um dia chegar a experimentar o social – isto é,
chegar a ver o mundo como de fora de nós mesmos e ver a nós mesmos
como somos, – nossa única esperança é encontrar pelo menos uma pessoa
que discorde espetacularmente de nós... e que ainda se digne a ser
visto na nossa companhia com alguma cumplicidade e orgulho. Somos
sem qualquer dúvida um traste, mas pode quem sabe nos redimir um
amigo insuportável. Ele será talvez comunista se você for de
direita ou homofóbico se você for gay, mas faz parte do milagre.
Basta que seja alguém que temos de atender de madrugada, alguém que
ouse sentar no seu lugar, alguém que te conheça bem demais e que não
caia nas suas armadilhas.
Essa ameaça de redenção e de autoconhecimento nos espreita fora
do nosso círculo: não é à toa que mantenhamos travas em todas as
portas.
http://forjauniversal.com/2013/a-igrejizacao-da-sociedade/
segunda-feira, 4 de março de 2013
A guerra dos palhaços
Uma vez dois palhaços se puseram a discutir. As pessoas paravam, divertidas, a vê-los.
- É o que?, perguntavam.
- Ora, são apenas dois palhaços discutindo.
Quem os podia levar a sério? Ridículos, os dois cômicos ripostavam. Os argumentos eram simples disparates, o tema era uma ninharice. E passou-se um inteiro dia.
Na manhã seguinte, os dois permaneciam, excessivos e excedendo-se. Parecia que, entre eles, se azedava a mandioca.
Na via pública, no entanto, os presentes se alegravam com a mascarada. Os bobos foram agravando insultos, em afiadas e afinadas maldades. Acreditando tratar-se de um espetáculo, os transeuntes deixavam moedinhas no passeio.
No terceiro dia, porém, os palhaços chegavam a vias de fato. As chapadas se desajeitavam, os pontapés zumbiam mais no ar que nos corpos. A miudagem se divertia, imitando os golpes dos saltimbancos. E riam-se dos disparatados, os corpos em si mesmos se tropeçando. E os meninos queriam retribuir a gostosa bondade dos palhaços.
- Pai, me dê as moedinhas para eu deitar no passeio.
No quarto dia, os golpes e murros se agravavam. Por baixo das pinturas, o rosto dos bobos começava a sangrar. Alguns meninos se assustaram. Aquilo era verdadeiro sangue?
- Não é a sério, não se aflijam, sossegaram os pais.
Em falha de trajetória houve quem apanhasse um tabefe sem direção. Mas era coisa ligeira, só servindo para aumentar os risos. Mais e mais gente se ia juntando.
- O que se passa?
- Nada. Um ligeiro desajuste de contas. Nem vale a pena separá-los. Eles se cansarão, não passa o caso de uma palhaçada.
No quinto dia, contudo, um dos palhaços se muniu de um pau. E avançando sobre o adversário lhe desfechou um golpe que lhe arrancou a cabeleira postiça. O outro, furioso, se apetrechou de simétrica matraca e respondeu na mesma desmedida.
Os varapaus assobiaram no ar, em tonturas e volteios. Um dos espectadores, inadvertidamente, foi atingido. O homem caiu, esparramorto.
Levantou-se certa confusão. Os ânimos se dividiram. Aos poucos, dois campos de batalha se foram criando. Vários grupos cruzavam pancadarias. Mais uns tantos ficaram caídos.
Entrava-se na segunda semana e os bairros em redor ouviram dizer que uma tonta zaragata se instalara em redor dos dois palhaços. E que a coisa escaramuçara toda a praça. E a vizinhança achou graça.
Alguns foram visitar a praça para confirmar os ditos. Voltavam com contraditórias e acaloradas versões. A vizinhança se foi dividindo, em opostas opiniões. Em alguns bairros se iniciaram conflitos.
No vigésimo dia se começaram a escutar tiros. Ninguém sabia exatamente de onde provinham. Podia ser de qualquer ponto da cidade. Aterrorizados, os habitantes se armaram. Qualquer movimento lhes parecia suspeito. Os disparos se generalizaram.
Corpos de gente morta começaram a se acumular nas ruas. O terror dominava toda cidade. Em breve, começaram os massacres.
No princípio do mês, todos os habitantes da cidade haviam morrido. Todos exceto os dois palhaços. Nessa manhã os cômicos se sentaram cada um em seu canto e se livraram das vestes ridículas. Olharam-se, cansados.
Depois, se levantaram e se abraçaram, rindo-se a bandeiras despregadas. De braço dado, recolheram as moedas nas bermas do passeio. Juntos atravessaram a cidade destruída, cuidando não pisar os cadáveres. E foram à busca de uma outra cidade.
“Estórias Abensonhadas” (Por Mia Couto, Editora Caminho, Portugal, 2002)
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
Fotomontagem (Scott Mutter)
Fuçando no blog "atrilha", do Tuco Egg, achei esta fotomontagem de Scott Mutter. Concordo com o Tuco Egg ... a igreja deveria ser assim ... para o lado de fora.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
Coisa de criança (Ed Renè Kivitz)
Por onde Jesus passava era possível ver crianças correndo em volta e se misturando na multidão. Os discípulos tentaram impedir que as crianças se amontoassem no colo de Jesus. Achavam que Jesus tinha coisa mais importante para fazer do que dar atenção às crianças, mas acabaram descobrindo que não apenas as crianças gostavam de Jesus, mas Jesus também gostava das crianças. Numa dessas ocasiões, Jesus pegou uma criança no colo e deixou muito claro que quem não se torna igual a uma criança não pode entrar no reino dos céus, pois o reino dos céus pertence aos que são semelhantes às crianças [Mateus 18.1-5; 19.13-15]. Naquele dia as crianças se tornaram um padrão para a espiritualidade cristã.
Evidentemente, Jesus não pretendia que nos tornássemos iguais às crianças em todas as dimensões da infância. As crianças, por exemplo, não sabem o que é a gratidão, pois não têm noções de medidas abstratas. Não têm condições de avaliar o que é feito por elas, não sabem quanto sacrifício é necessário para que sejam cuidadas e não têm critérios para os custos da dedicação dos pais ou o valor das coisas que são oferecidas a elas. Por isso é que os pais vivem dizendo “diz obrigado para a titia”, “já disse obrigado para o vovô?”, pois se não o fizessem, as crianças simplesmente pegariam o presente e sairiam correndo para brincar. As crianças também não têm noções de tempo, distância e volume. Por isso é que usam palitos de fósforo para marcar quantos dias faltam para o passeio no zoológico, numa viagem longa perguntam de cinco em cinco minutos se está chegando, e de noite, antes de irem para a cama, abrem os braços e dizem com aquele sorriso lindo “mamãe, eu te amo desse tamanho assim”.
As crianças também estão absolutamente fora das categorias sociais de valores e importância. Tratam o general com a mesma displicência com que tratam o zelador do prédio onde moram, e falam as maiores barbaridades quando percebem algo inusitado em algum adulto que pretende conquistar sua simpatia, deixando os pais ruborizados e constrangidos. Elas não sabem quem é importante e quem não é. Elas ainda não foram contaminadas com os paradigmas do mercado, que valora pessoas de acordo com posição social, conta bancária, ou potencial de favorecimento e trocas de favores. Não fazem a menor ideia, por exemplo, de que é preciso um sorriso de plástico para o senhorio que chegou para tratar do aumento do aluguel, ou demonstrar especial apreço ao chefe que veio para o jantar. Isso significa que uma criança jamais perguntaria para Jesus “quem é o mais importante no reino dos céus?”, pois não lhes passa pela cabeça que um ser humano pode ser maior ou menor do que o outro em termos de valor intrínseco – aliás, nem imaginam que exista ou o que seja esse tal de “valor intrínseco”.
A exortação de Jesus aos seus discípulos sublinha exatamente esses traços próprios das crianças: o absoluto despojamento das disputas de poder e a absoluta ignorância a respeito das hierarquias que separam os seres humanos uns dos outros, e promovem toda sorte de guerras e conflitos, que somente se justificam pela vaidade e o orgulho dos egos que pretendem se afirmar às custas da diminuição e destruição dos demais.
Como seria o mundo se todos tivéssemos o coração das crianças? Teríamos breves desentendimentos, logo seguidos de um enxugar de lágrimas e a correria reiniciada rumo à próxima brincadeira. Haveria mais cooperação e menos competição, mais perdão e menos ressentimento e ódio, mais partilha e menos acúmulo, maios brincadeira e menos agressões, mais amores e menores dores. O rabino Harold Kushner disse que as crianças perdoam rápido, e se reconciliam na velocidade da luz, pois “preferem ser felizes a ter razão”. São simples, e humildes, não se constrangem com vitórias e derrotas, pois não competem, apenas brincam. Não estão no jogo de “quem é o maior e quem é o menor”.
O reino de Deus é um reino para gente com coração de criança. Todo mundo brincando de roda, cada um segurando na mão do outro, sem restrição para quem chegar, apoteose da fraternidade universal, sob a benção do Pai, do Filho e do Espírito Santo, numa santa e bendita folia. Coisa de criança.
© 2012 Ed René Kivitz
http://ibab.com.br/blog/post/coisa-de-crianca/
domingo, 3 de fevereiro de 2013
Contingência, sofrimento e Deus (Ricardo Gondim)
O Brasil sofre. De repente todos nos sentimos irmanados pela dor. O
trauma de saber que pelo menos 232 vidas foram arrancadas prematuramente
parece demais. Apesar de saber que no Brasil se faz vista grossa à
legislação que previne acontecimentos como o de Santa Maria, apesar de
todos os senões que evitariam tantas lágrimas, nos vemos mais uma vez
diante do que a filosofia trata como contingência. Esclareço:
contingência significa que há acontecimentos desnecessários. Os fatos
tenebrosos não fazem parte de um encadeamento inevitável.
Afirmar que uma tragédia pode ser evitada implica em que ela não foi
orquestrada por uma divindade. Na contingência fatos ocorrem sem alguma
razão que os explique ou justifique, e que escaparam da engrenagem de
causa e efeito. Se o teto de uma igreja cai, um avião despenca, uma
boate pega fogo, é porque o mundo contém espaço para acidentes –
causados por negligência, falha humana ou mecânica- e podem matar sem
que se atrelem a fado, destino, punição ou plano de Deus.
Sem atinar, muitos repetem a crença de que só se morre quando chega a
hora. Para que tal afirmação seja verdadeira, destino precisaria vir
escrito com “d” maiúsculo, pois necessitaria de inteligência e controle
para reunir em uma casa de espetáculo, avião ou ônibus, todas as pessoas
destinadas a morrer naquele dia específico. Acreditar assim concede à
fatalidade um poder apavorante: imaginar que jovens, seduzidos por uma
orquestração oculta, entraram como gado no matadouro.
Da mesma forma, muitos tentam encadear os eventos acidentais da vida,
supondo que Deus “permite” sinistros com algum propósito. Querem dizer
que cada pessoa, com histórias, projetos, sonhos, viu-se arrancada da
existência “porque Deus assim quis”. O objetivo de Deus seria um
mistério que ninguém entende e será revelado a longo prazo?
Como ter fé em um Deus que “deixa” rapazes e moças se pisotearem até a
morte? Ele utiliza eventos macabros para ensinar as pessoas a terem
medo dele? Esse é o seu jeito de produzir arrependimento? Tal
entendimento faria com que a biografia de cada indivíduo que se perdeu
fosse descartável. Deus precisaria, inclusive, manter-se frio,
desprezando as lágrimas de mães e pais. Alguns chegam a ensinar que o
Divino Oleiro faz o que quer e não podemos questioná-lo. Deus mata,
afoga, asfixia e dá as costas em “vontade permissiva” porque deve
conduzir a macro história para a sua glória final?
Nas grandes tragédias, alguns se contentam em explicar os eventos
através da doutrina do controle absoluto. Afirmam que Deus tem todo o
poder e não seria difícil para ele reunir em um só lugar as pessoas que
deveriam morrer. Um Deus com requintes desse maquiavelismo, não passaria
de um demônio. Deus é bom. Satisfaz pensar que na divina economia Deus
ainda vai compensar a morte absurdamente desnecessária de tantos jovens?
Difícil explicar tal conceito aos pais, avós e parentes que sonharam em
vê-los terminando a faculdade, casando e tendo filhos. Bastaria falar
da vida depois da morte para consolar mais de duzentas mães acorrentadas
à trágica realidade de que Alguém lhes roubou a razão de viver?
A idéia de que Deus tem um plano para cada morte se esvazia diante
dos números. Aviões caem, ônibus tombam, boates incendeiam. Todos os
dias incontáveis acidentes acontecem. Como explicar as balas perdidas,
os erros médicos e os atropelamentos provocados por bêbados? Todos
cumprem alguma ordem ou são inevitáveis? Uma senhora de nossa
comunidade caiu da laje de sua casa em construção, quebrou a coluna e
ficou paraplégica. Ela fotografava a obra para que a filha lhe ajudasse
nas despesas do acabamento. A mais tosca explicação que a teologia
poderia dar ao seu infortúnio é que Deus tem um plano para deixá-la
paralítica ou a puniu por algum pecado.
Jesus considerou em seus ensinos um mundo contingente. Contradizendo a
religiosidade popular judaica, ele desconectou a queda de uma torre de
qualquer desígnio divino. Não concordou com a insinuação dos discípulos
de que a cegueira de um mendigo era consequência do pecado dele ou de
seus antepassados. No Sermão do Monte, Cristo advertiu os seus
seguidores de que mesmo alicerçando a casa sobre a rocha, eles não
seriam poupados dos ventos contrários e da tempestade.
O mundo das relações, devido ao amor, precisa de liberdade, e essa
liberdade produz contingência. Portanto, acidentes, percalços,
incidentes, fazem parte da condição humana. O contrário seria absoluta
segurança. Sem a ameaça do sofrimento, sem a possibilidade da morte
prematura, não enfrentaríamos ameaça de espécie alguma. Acontece que a
ausência da contingência nos desumanizaria. A consciência do risco de
adoecer e a imprevisibilidade da morte súbita, embora angustiantes, são o
preço que pagamos por nossa humanidade. Jesus encarnou a compaixão de
Deus, (compadecer significa sofrer junto), para nos mostrar que Deus
sabe do risco de viver. Ele reconhece que mal e bem acontecerão no
espaço da liberdade, por isso, oferece o ombro e as lágrimas. Deus não
deseja que nossa vida se perca no inferno da dor.
Qualquer desastre revela a inutilidade de pensar que o exercício
correto da religião ou a capacidade tecnológica bastam para anular a
contingência. A vida será sempre imprecisa e efêmera. Diante da
possibilidade do sofrimento, aprendamos a chorar com os que choram.
Soli Deo Gloria
http://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/contingencia-sofrimento-e-deus/
segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
A maior tragédia de nossas vidas (Poesia de Fabrício Carpinejar)
Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu? Morri na Rua dos Andradas, 1925. Numa ladeira encrespada de fumaça.
A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul. Nunca uma nuvem foi tão nefasta.
Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia. Seguirá sozinha, avulsa, página arrancada de um mapa.
A fumaça corrompeu o céu para sempre. O azul é cinza, anoitecemos em 27 de janeiro de 2013.
As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte nunca mais será controlada.
Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa.
Morri porque já entrei em uma boate pensando como sairia dali em caso de incêndio.
Morri porque prefiro ficar perto do palco para ouvir melhor a banda.
Morri porque já confundi a porta de banheiro com a de emergência.
Morri porque jamais o fogo pede desculpas quando passa.
Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram.
Morri sufocado de excesso de morte; como acordar de novo?
O prédio não aterrissou da manhã, como um avião desgovernado na pista.
A saída era uma só e o medo vinha de todos os lados.
Os adolescentes não vão acordar na hora do almoço. Não vão se lembrar de nada. Ou entender como se distanciaram de repente do futuro.
Mais de duzentos e quarenta jovens sem o último beijo da mãe, do pai, dos irmãos.
Os telefones ainda tocam no peito das vítimas estendidas no Ginásio Municipal.
As famílias ainda procuram suas crianças. As crianças universitárias estão eternamente no silencioso.
Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu.
As palavras perderam o sentido.
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