quarta-feira, 24 de julho de 2013

Por que eu nunca me converteria (Ricardo Gondim)


Pois que vantagem há em suportar açoites recebidos por terem cometido o mal? Mas se vocês suportam o sofrimento por terem feito o bem, isso é louvável diante de Deus.
I Pe 2:20 

Se alguns frequentassem determinadas igrejas eles jamais se converteriam ao cristianismo. Em certas instituições religiosas há desprezo pelo pensar. Os que sentem necessidade de saber o porquê das coisas e rejeitam a possibilidade de se sentirem indoutrinados, goela abaixo, sem que tenham a oportunidade de argumentar, criam repulsa ao fenônemo religioso que se alastra pelo Brasil. Muitos não se converteriam no ambiente que diz: Creia porque estou dizendo; não especule, não questione, aceite apenas. Um lugar onde se exige obediência cega, onde é proibido o exercício do bom senso, pode crescer em membresia, ser bem sucedido financeiramente e sofrer, inclusive, cooptação das forças políticas, mas jamais pode considerar-se legitimamente evangélico. Se você foi a uma dessas igrejas e não se converteu, parabéns. Você tem toda razão de reagir como reagiu. Eu também não me converteria.

Igreja que apequena debate, que se volta para questiúnculas e enfatiza pormenores irrelevantes do tipo mulher deve usar cabelo comprido ou curto? pode pintar as unhas com esmalte vermelho, azul ou de cor nenhuma? tem permissão de usar calças compridas? Além do debate em si ser ridículo,  o mundo nunca mudará através das rédeas curtas desse legalismo coercitivo, dessa demagogia farisaica ou dessa piedade fundamentalista. E se existe um Deus preocupado com tão intrincada rede de pode-não-pode,  melhor mesmo nem se aproximar dele. Como imaginar Jesus morrendo na cruz, e os mártires da igreja adubando com seu sangue o solo de Roma para que a pauta mais relevante dos seguidores de Jesus fosse essa?

Converter-se à fé se tornou crescentemente complicado nos ambientes piegas, das frases prontas, dos chavões sovados e reciclados que jamais favorecem a experiência numinosa do sagrado – na melhor das hipóteses, produzem alucinação.

A pressão do mercado apressa os pastores na busca por projeção. Esse anseio gera comunidades simplistas. A complexidade da vida, com todos as implicações que as escolhas trazem, não comportam respostas simplistas. Um jargão preocupante se difundiu entre os neopentecostais: Está amarrado em nome de Jesus! Essa amarração pretendia conter desde as investidas de Lúcifer às situações corriqueiras que nos afligem como gripe, trânsito engarrafado e problemas na justiça. (todavia, alguns divulgadores da frase não conseguiram evitar a cadeia)

Uma pitada do que acorre na enorme maioria das igrejas que se pretendem evangélicas dá ideia do grau de rejeição que elas podem gerar:

Todos a uma só voz digam: Amém.
Foi fraco ou não ouvi direito? Quero um sonoro Amém.
Todos, mais alto e pausado para afugentar o diabo, gritem Gloria a Deus.
Vou orar para que Deus coloque um círculo de anjos num raio de cinco quilômetros e o diabo não vai se aproximar.
Diga para quem está do seu lado: o ambiente está limpo, agora podemos louvar a Deus.

Evangelho é simples sem carecer desses artifícios simplistas e toscos.
Ora, quem se sente alegre não precisa gritar para potencializar sua felicidade; e o triste não mudará seu estado melancólico por meio de catarse temporária. Culto a Deus não depende de que todas as pessoas sorriam. Não há erro em estar abatido. Higienizar o ambiente para que o diabo não perturbe é tão medieval que chega a constranger. Essas técnicas de manipulação de massas se evidenciam em cada louvorzão, em cada conferência profética em cada congresso pentecostal. Tal suspensão temporária do senso crítico causa espécie por vulnerabilizar o povo a inescrupulosos mercadejadores do sagrado. Em muitos ajuntamentos, o pobre é extorquido até o último centavo do que possui nos bolsos ou na conta bancária. O resultado é que o Brasil já tem líderes de igrejas donos de aviões a jato, bancos, redes de rádio e televisão; alguns com cacife para eleger senadores, negociar comissões no Congresso e apontar o candidato à vice presidência de República. Nesse embalo, o projeto teocrático deixa de parecer impossível e, claro, preocupa.

A pergunta é inevitável: Então, por quais cargas d’água você se converteu e por que eu deveria me converter?

Converti-me porque a mensagem que me apresentaram soou racional e lógica o suficiente para satisfazer o meu intelecto e poderosa espiritualmente para impactar a minha vida. Eu cri invadido pela Graça. O Evangelho também indicou o caminho para algumas perguntas que eu já guardava: Deus? Bem? Maldade? Vida? Quem sou eu? Por que estou aqui? 

Se na filosofia naturalista e no cientifismo moderno, eu era apenas um acidente cósmico, se no sistema oriental hindu e budista, mera emanação do todo divino – panteísmo – e se  no espiritismo kardecista, espírito aprisionado a um corpo, cumprindo a lei do karma, a mensagem de Jesus me soou contundente, bonita e nobre: Eu sou a imagem de Deus que é amor. Ele me chamou de amigo, irmão, filho.

A resposta cristã para estupros, tráfico de drogas, clínicas psiquiátricas abarrotadas, embora não seja uniforme, mas cheia de controversias, me bastou. Quanto mais me aprofundei nas questões da justiça e da denúncia do pecado sistêmico que perpetua a miséria, eu vi que o número de opiniões e era proporcional ao número de denominações e escolas teológica. Os apontamentos cristãos para a solução do maior de todos os enígmas: Por que sofre o justo? eram conflitantes. Contudo, nesse emaranhado de argumentos a mensagem do Sermão do Monte me abalou. As palavras ali registradas me pareceram as mais humanas e mais desafiadoras que eu lera. Se no conceito oriental o mal e o bem se fundem numa só realidade, se no conceito espírita o mal se liga ao aperfeiçoamento, no que entendi do ensino de Jesus, o mal extrapola todas as abordagens. Ele tem que ser combatido. O mal decorre da liberdade. Fomos criados por Deus para a liberdade. Muitas vezes nos valemos dessa vocação para destruir. O mal é um acinte, jamais tolerado ou compactuado por Deus que interpela, sem cessar, homens e mulheres para enfrentarem todas as formas de antivida como suas mãos, pés e boca.

Deus é amor. Bondade existe no universo não como acidente, mas como intenção de um Deus eternamente amoroso e justo. João afirmou em sua epístola universal que todo aquele que ama é nascido de Deus. No amor ao pobre, não no cerimonialismo que exalta a liturgia, encontramos o rosto de Deus. No amor ao excluído, não no dogmatismo que glorifica a doutrina, somos tocados pelo divino. No amor ao estranho – o estrangeiro – não no institucionalismo, nos colocamos no caminho da verdade.

Converti-me porque tive a felicidade de ser anterior ao besteirol que se alastrou no movimento evangélico brasileiro nas últimas décadas; converti-me porque cri no Deus que amou o ser humano de tal meneira que não hesitou em continuar querendo bem mesmo diante do sacrifício de seu Unigênito – Jesus Cristo. Continuo no caminho, apesar de não ter alcançado resposta final e decisiva para todos os meus questionamentos – e isso é muito bom. Sinto-me ainda devedor ao projeto de vida que ele propôs. Continuo a desejá-lo, sabendo que nesse caminho encontro vida eterna.

Soli Deo Gloria

http://www.ricardogondim.com.br/estudos/por-que-eu-nunca-me-converteria/



 

sexta-feira, 5 de julho de 2013

O operário em construção

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção. 

(Vinícius de Moraes)
http://www.viniciusdemoraes.com.br/site/article.php3?id_article=206





terça-feira, 25 de junho de 2013

Aprender (Tanlan)

 
Coloque a culpa na história
Nos erros que o passado cometeu
Coloque a culpa nos reis de agora


Coloque a culpa no estado
Ou mesmo em tudo que é religião
Coloque a culpa no caos do acaso


Tanta gente já morreu
Sem nunca viver
E a razão já se perdeu
Sem nunca saber


Quando vamos aceitar
Todos temos tanto pra melhorar
Quando vamos entender
Antes de mudar
Temos que aprender


Alguém me mostre um alívio
Vivemos numa grande confusão
Como acabar com um problema antigo


Não sabemos nem viver
Nada é o que parece ser
Não sabemos nem porque
Matar ou morrrer


Quando vamos aceitar
Todos temos tanto pra melhorar
Quando vamos entender
Antes de mudar
Temos que aprender a amar





sexta-feira, 21 de junho de 2013

Até quando? (Gabriel O Pensador)


Não adianta olhar pro céu
Com muita fé e pouca luta
Levanta aí que você tem muito protesto pra fazer
E muita greve, você pode, você deve, pode crer
Não adianta olhar pro chão
Virar a cara pra não ver
Se liga aí que te botaram numa cruz e só porque Jesus
Sofreu não quer dizer que você tenha que sofrer!
Até quando você vai ficar usando rédea?!
Rindo da própria tragédia
Até quando você vai ficar usando rédea?!
Pobre, rico ou classe média
Até quando você vai levar cascudo mudo?
Muda, muda essa postura
Até quando você vai ficando mudo?
muda que o medo é um modo de fazer censura

Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!)
Até quando vai ficar sem fazer nada?
Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!)
Até quando vai ser saco de pancada?

Você tenta ser feliz, não vê que é deprimente
O seu filho sem escola, seu velho tá sem dente
Cê tenta ser contente e não vê que é revoltante
Você tá sem emprego e a sua filha tá gestante
Você se faz de surdo, não vê que é absurdo
Você que é inocente foi preso em flagrante!
É tudo flagrante! É tudo flagrante!!

A polícia
Matou o estudante
Falou que era bandido
Chamou de traficante!
A justiça
Prendeu o pé-rapado
Soltou o deputado
E absolveu os PMs de Vigário!

A polícia só existe pra manter você na lei
Lei do silêncio, lei do mais fraco
Ou aceita ser um saco de pancada ou vai pro saco
A programação existe pra manter você na frente
Na frente da TV, que é pra te entreter
Que é pra você não ver que o programado é você!
Acordo, não tenho trabalho, procuro trabalho, quero trabalhar
O cara me pede o diploma, não tenho diploma, não pude estudar
E querem que eu seja educado, que eu ande arrumado, que eu saiba falar
Aquilo que o mundo me pede não é o que o mundo me dá
Consigo um emprego, começa o emprego, me mato de tanto ralar
Acordo bem cedo, não tenho sossego nem tempo pra raciocinar
Não peço arrego, mas onde que eu chego se eu fico no mesmo lugar?
Brinquedo que o filho me pede, não tenho dinheiro pra dar!
Escola! Esmola!
Favela, cadeia!
Sem terra, enterra!
Sem renda, se renda! Não! Não!!

Muda que quando a gente muda o mundo muda com a gente
A gente muda o mundo na mudança da mente
E quando a mente muda a gente anda pra frente
E quando a gente manda ninguém manda na gente!
Na mudança de atitude não há mal que não se mude nem doença sem cura
Na mudança de postura a gente fica mais seguro
Na mudança do presente a gente molda o futuro!

Até quando você vai ficar levando porrada,
até quando vai ficar sem fazer nada
Até quando você vai ficar de saco de pancada?
Até quando?

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Trecho do livro "O Evangelho Maltrapilho" - Brennan Manning




Nosso afã de impressionar a Deus, nossa luta pelos méritos de estrelas douradas, nossa afobação por tentar consertar a nós mesmos ao mesmo tempo em que escondemos nossa mesquinharia e chafurdamos na culpa são repugnantes para Deus e uma negação aberta do evangelho da graça. Nossa abordagem da vida cristã é tão absurda quanto o jovem que depois de receber a sua licença de encanador foi levado para ver as cataratas do Niágara. Ele estudou-as por um minuto e depois disse: "Acho que tenho como consertar isso".

"O Evangelho Maltrapilho" - Brennan Manning



terça-feira, 19 de março de 2013

A igrejização da sociedade (Paulo Brabo)

Houve tempo em que o mundo era um deserto, e quem encon­trava uma igreja encon­trava um tesouro. Hoje em dia, quando nin­guém tem como igno­rar o mal que a igreja ins­ti­tu­ci­o­nal per­pe­trou e per­mi­tiu ao longo dos sécu­los, pode ser fácil igno­rar que ao longo de todo esse tempo a igreja per­ma­ne­ceu, a seu pró­prio modo ambí­guo (por­que ins­ti­tu­ci­o­nal) um refú­gio e um con­forto – num tempo em que essas coi­sas eram con­si­de­ra­vel­mente mais raras e mais caras do que no nosso.

Por quase dois milê­nios a igreja foi, no oci­dente, o único lugar em que gente de todos os sexos, raças e níveis soci­ais podia ser con­ce­bi­vel­mente vista debaixo do mesmo teto ao mesmo tempo. Homens e mulhe­res, cam­po­ne­ses e magis­tra­dos, resi­den­tes e estran­gei­ros, ricos e pobres fazendo alguma coisa jun­tos? Ofi­ci­al­mente? Em público? Só se fosse na igreja. É claro que valiam e se reen­ce­na­vam, em sua maior parte, as dife­ren­ças de tra­ta­mento e as dis­tân­cias soci­ais do mundo lá fora, mas incri­vel­mente todos os joe­lhos se dobra­vam diante da mesma ideia.

A seu modo capenga e durante toda uma era, por­tanto, a igreja mostrou-​​se capaz de ofe­re­cer um senso de per­tença àque­les que não podiam espe­rar encon­trar abso­lu­ta­mente qual­quer outro espaço social que se mos­trasse dis­posto a acolhê-​​las. Não é incon­ce­bí­vel que a per­sis­tên­cia e a pro­e­mi­nên­cia da igreja como “lugar para todos” tenha seme­ado no cora­ção dos homens, num pro­cesso que pode ter durado toda a era cristã, a noção de direi­tos huma­nos universais.

É lógico que a igreja for­mal não só rece­bia as mui­tas recom­pen­sas dessa una­ni­mi­dade, mas exi­gia tam­bém um preço, a total con­for­mi­dade de com­por­ta­mento e de opinião.

O pro­blema e o fas­cí­nio de uma ins­ti­tui­ção estão em que o seu preço é tam­bém a sua recom­pensa: quando mais con­for­mado e enga­jado você se mos­tra, mais ina­ba­lá­vel e com­pen­sa­dor será o senso de iden­ti­dade gerado pela sua expe­ri­ên­cia – e menor o risco de você sentir-​​se ten­tado a ques­ti­o­nar a vali­dade da ins­ti­tui­ção ou da sua par­ti­ci­pa­ção nela.

Curi­o­sa­mente, esse efeito de reforço da expe­ri­ên­cia ecle­siás­tica mostrou-​​se mais impor­tante e irre­sis­tí­vel quando a igreja come­çou a ser seri­a­mente ques­ti­o­nada pelo mundo fora das suas portas.

A curva de secu­la­ri­za­ção da soci­e­dade come­çou a alçar-​​se nos sécu­los XVIII e XIX, mas seu dese­nho ficou nítido e seu tra­jeto com­pleto somente no século XX. E pre­ci­sa­mente quando o mundo come­çou a duvi­dar apai­xo­na­da­mente de tudo que a igreja con­si­de­rava certo e impor­tante, o meca­nismo de reforço da expe­ri­ên­cia ecle­siás­tica mostrou-​​se mais lubri­fi­cado e eficaz.

Você podia pas­sar uma semana difí­cil entre gente incré­dula que dis­cor­dava estre­pi­to­sa­mente de todas as suas esco­lhas, renún­cias e pri­o­ri­da­des, mas o domingo estava ali para rea­cen­der a sua fé. Sema­nal­mente a igreja se mos­trava pronta a exer­cer a sua fun­ção de máquina de refor­çar as suas cren­ças, res­tau­rando desse modo o seu senso de iden­ti­dade (e com isso a sua moti­va­ção para continuar).

A expe­ri­ên­cia ecle­siás­tica nesse período dei­xou de ter muito a ver com o con­teúdo da fé e pas­sou a concentrar-​​se na pre­mi­a­ção da par­ti­ci­pa­ção. A reu­nião de ado­ra­ção teve de se tor­nar muito dife­rente, uma expe­ri­ên­cia muito mais satis­fa­tó­ria em ter­mos sen­so­ri­ais, emo­ci­o­nais e soci­ais do que tinha sido por mil anos; não devido a qual­quer com­pro­misso com a orto­do­xia, mas de modo a maxi­mi­zar os meca­nis­mos de reforço ine­ren­tes à par­ti­ci­pa­ção na instituição.

Todos se reu­niam, se abra­ça­vam, can­ta­vam can­ções doces e pun­gen­tes, cho­ra­vam jun­tos a clara incom­pre­en­são do mundo e davam tapi­nhas nas cos­tas uns dos outros por resis­ti­rem bra­va­mente às ten­ta­ções da liber­dade. Con­fe­tes eram joga­dos por todos sobre todos, as pró­xi­mas datas e metas de venda eram refor­ça­das e todos par­tiam para a semana no deserto com um senso de per­tença revigorado.

Você saía dali ina­ba­lá­vel, imba­tí­vel, uns­top­pa­ble, intei­ra­mente pronto para resis­tir ao impacto de alguém que dis­cor­dasse de você. E saía tam­bém igno­rante de que encon­trar alguém que dis­corda de você pode ser a coisa mais sau­dá­vel, apai­xo­nante e cura­tiva que pode acon­te­cer a qual­quer um.

O mundo está bas­tante secu­lar para que a mai­o­ria das pes­soas con­corde comigo que nin­guém deve­ria ter de viver desse modo: mani­pu­lado por recom­pen­sas que você tam­bém ofe­rece a outros na mesma con­di­ção e que por sua vez ser­vem tam­bém para manipulá-​​los; ater­ro­ri­zado diante da inde­pen­dên­cia de quem dis­corda de você por­que sim­ples­mente exis­tindo ela coloca em risco o seu sen­ti­mento de identidade. 

Mas no momento em que a curva da secu­la­ri­za­ção estava com­pleta e pare­cia que se apro­xi­mava o dia em que todos cami­nha­ría­mos de modo cons­ci­ente e res­pon­sá­vel por esta terra, sem a neces­si­dade de meca­nis­mos con­cor­ren­tes de vali­da­ção con­tí­nua, entrou em cena a inter­net – e quando a inter­net ficou pronta completava-​​se tam­bém o pro­cesso de igre­ji­za­ção da sociedade.

Em sua pre­sente ver­são “social” a inter­net pro­move a igre­ji­za­ção da expe­ri­ên­cia com uma efi­cá­cia que a pró­pria igreja não seria capaz de sonhar. Os velhos meca­nis­mos de vali­da­ção e de reforço encon­tra­ram ter­reno per­feito para se ins­ta­lar e mul­ti­pli­car: pri­meiro no salão árido dos blogs, dos power­points e das men­sa­gens enca­mi­nha­das de e-​​mail, mas mais recen­te­mente nas camas con­for­tá­veis do twit­ter e do facebook.

Nos velhos tem­pos as pes­soas tinham de espe­rar o domingo para a sua ses­são sema­nal de reforço e pre­mi­a­ção; hoje o reforço é dis­pen­sado dire­ta­mente na veia, em modo stre­a­ming/​transmissão contínua. 

Enfim: a inter­net per­mite que você con­viva sem pausa e sem inter­fe­rên­cia com a opi­nião e com a apro­va­ção de gente que você esco­lheu a dedo por­que pensa como você. 24 horas por dia. 7 dias por semana. Tole­rân­cia zero.

Aquele tio­zi­nho que você adi­ci­o­nou dis­trai­da­mente ou resig­na­da­mente no face­book: quando ele ousar man­char o seu mural com uma men­sa­gem cujo teor político-​​filosófico-​​teológico-​​estético-​​musical-​​desportivo-​​ sexual que você não aprova, o que resta fazer? Tra­tar de excluir o cara, ou pelo menos desinscrever-​​se do con­teúdo dele, de modo a nunca mais ter de se sub­me­ter a uma opi­nião diversa da sua. Não tenho conta no face­book, mas se tivesse eu faria a mesma coisa, espe­ci­al­mente por­que as pes­soas estão rara­mente cer­tas: isto é, é irri­tan­te­mente comum que dis­cor­dem de mim.

O face­book é este mundo ideal em que você só pre­cisa con­ver­sar com seus “ami­gos”, ganhando ao mesmo tempo o pri­vi­lé­gio de que pou­cos reis efe­ti­va­mente des­fru­ta­ram, o de poder calar todas as vozes dissidentes. 

O para­doxo é que a expe­ri­ên­cia da inter­net “social” acaba nos incen­ti­vando a mer­gu­lhar cada vez mais doen­ti­a­mente, de modo infan­til mas tam­bém irre­sis­tí­vel, em nós mes­mos. Temos mais “con­ta­tos” do que nunca, mas a ope­ra­ção da coisa garante que ter­mi­na­re­mos por con­su­mir ape­nas a infor­ma­ção que reforça aquilo em que nós mesmo já cremos. 

Para dizer de outro modo, a inter­net e sua oni­pre­sença tor­nou a expe­ri­ên­cia da igreja por­tá­til, no sen­tido em que posso sen­tir a cada ins­tante a com­pa­nhia e a apro­va­ção de gente que com­par­ti­lha da minha visão de mundo. Meu mural do face­book é um espaço apa­ren­te­mente rico, vivo e diver­si­fi­cado, e provê evi­dên­cia inequí­voca da quan­ti­dade de gente que me estima e que me aceita como sou – mas trata-​​se de um espaço cri­ado, desen­vol­vido e man­tido de modo a per­ma­ne­cer livre de ver­da­deira dis­cus­são e de pen­sa­men­tos dis­cor­dan­tes. Você parece estar ouvindo uma infi­ni­dade de vozes, mas com 900 ami­gos falando sem tré­gua no seu mural você está ape­nas gal­va­ni­zando aquilo em que você acre­dita: está ouvindo ape­nas a sua pró­pria voz.

E já que você recom­pensa os outros do mesmo modo que eles recom­pen­sam você, a ten­dên­cia é que a opi­nião de vocês fique cada vez mais pola­ri­zada em rela­ção ao mundo lá fora. Não faz dife­rença se você é cris­tão ou ateu, hetero ou gay, de direita ou de esquerda: a inter­net social vai pro­ver o senso de iden­ti­dade e de ultraje de que você pre­cisa para poder igno­rar ou ven­cer a ame­aça dos seus antagonistas.

Pre­ci­sa­mente como o cris­tão que saía do culto de domingo com o seu senso de identidade/​alienação for­ta­le­cido, o face­book, o twit­ter e seus ami­gos pro­vém esse pano de fundo que nos per­mite atra­ves­sar into­ca­dos a incon­ve­ni­ente expe­ri­ên­cia do mundo real — tra­ba­lho, ôni­bus, metrô, cal­çada, res­tau­rante, táxi, ricos e pobres, nor­des­ti­nos e yup­pies, comu­nis­tas e empre­sá­rios, men­di­gos e boçais, gente pro­tes­tante ou de can­dom­blé. Cami­nha­mos ina­ba­lá­veis em meio a um oce­ano de des­co­nhe­ci­dos que não nos com­pre­en­de­riam e que não que­re­mos com­pre­en­der, por­que tra­ze­mos a nossa igreja den­tro de nós. Fecha­dos cada um no seu mundo, celu­lar em punho, esta­mos para todos os efei­tos intei­ra­mente livres de inte­ra­ções emba­ra­ço­sas e não-​​antecipadas com gente que não esco­lhe­mos expli­ci­ta­mente aprovar.

Ao mesmo tempo, não é pre­ciso pon­de­rar muito para enten­der que gas­ta­mos cada vez menos tempo com ami­gos de carne e osso. É quase covar­dia recor­rer ao ibope, mas as pes­qui­sas con­cor­dam com o óbvio: que gas­ta­mos menos tempo com con­ver­sas e encon­tros infor­mais do que fazía­mos há dez, vinte anos. Nunca gastou-​​se tanto tempo com entre­te­ni­mento, exer­cí­cio e trans­porte e tão pouco com fes­tas, bares, jogos, pela­das, pas­seios, saraus, luaus, bai­les, ban­que­tes, noi­tes de São João, rodas de samba. Pique­ni­ques, alguém lem­bra do último? Rece­ber ami­gos em casa, essas coi­sas do século XIII

Qual foi a última vez que um amigo de carne e osso apre­sen­tou você a uma pes­soa de carne e osso?

Pelo menos, no tempo da supre­ma­cia da igreja, o corpo-​​a-​​corpo sem con­for­tos do mundo real nos for­çava a enfren­tar uma maior diver­si­dade de valo­res, inte­res­ses e de opi­niões. No uni­verso esten­dido do tra­ba­lho, da escola ou da vizi­nhança, e ape­sar de toda a nossa cau­tela, ami­gos se impu­nham e nos con­quis­ta­vam mesmo que não qui­sés­se­mos. Mesmo quando, absur­da­mente, pen­sa­vam e agiam como jamais faría­mos nós mesmos.

Quem perde com essa ausên­cia de inte­ra­ção é você, meu velho, sou eu. Ten­de­mos todos ao cir­cu­lar, ten­de­mos todos à este­ri­li­dade, e nos­sos cír­cu­los de con­fir­ma­ção nos fazem meno­res em vez de nos fazer crescer.

Se que­re­mos um dia che­gar a expe­ri­men­tar o social – isto é, che­gar a ver o mundo como de fora de nós mes­mos e ver a nós mes­mos como somos, – nossa única espe­rança é encon­trar pelo menos uma pes­soa que dis­corde espe­ta­cu­lar­mente de nós... e que ainda se digne a ser visto na nossa com­pa­nhia com alguma cum­pli­ci­dade e orgu­lho. Somos sem qual­quer dúvida um traste, mas pode quem sabe nos redi­mir um amigo insu­por­tá­vel. Ele será tal­vez comu­nista se você for de direita ou homo­fó­bico se você for gay, mas faz parte do mila­gre. Basta que seja alguém que temos de aten­der de madru­gada, alguém que ouse sen­tar no seu lugar, alguém que te conheça bem demais e que não caia nas suas armadilhas.

Essa ame­aça de reden­ção e de auto­co­nhe­ci­mento nos espreita fora do nosso cír­culo: não é à toa que man­te­nha­mos tra­vas em todas as portas.


Paulo Brabo, 15 de março de 2013


http://forjauniversal.com/2013/a-igrejizacao-da-sociedade/



segunda-feira, 4 de março de 2013

A guerra dos palhaços


Uma vez dois palhaços se puseram a discutir. As pessoas paravam, divertidas, a vê-los.
- É o que?, perguntavam.
- Ora, são apenas dois palhaços discutindo.

Quem os podia levar a sério? Ridículos, os dois cômicos ripostavam. Os argumentos eram simples disparates, o tema era uma ninharice. E passou-se um inteiro dia.
Na manhã seguinte, os dois permaneciam, excessivos e excedendo-se. Parecia que, entre eles, se azedava a mandioca.
Na via pública, no entanto, os presentes se alegravam com a mascarada. Os bobos foram agravando insultos, em afiadas e afinadas maldades. Acreditando tratar-se de um espetáculo, os transeuntes deixavam moedinhas no passeio.
No terceiro dia, porém, os palhaços chegavam a vias de fato. As chapadas se desajeitavam, os pontapés zumbiam mais no ar que nos corpos. A miudagem se divertia, imitando os golpes dos saltimbancos. E riam-se dos disparatados, os corpos em si mesmos se tropeçando. E os meninos queriam retribuir a gostosa bondade dos palhaços.
- Pai, me dê as moedinhas para eu deitar no passeio.
No quarto dia, os golpes e murros se agravavam. Por baixo das pinturas, o rosto dos bobos começava a sangrar. Alguns meninos se assustaram. Aquilo era verdadeiro sangue?
- Não é a sério, não se aflijam, sossegaram os pais.
Em falha de trajetória houve quem apanhasse um tabefe sem direção. Mas era coisa ligeira, só servindo para aumentar os risos. Mais e mais gente se ia juntando.

- O que se passa?
- Nada. Um ligeiro desajuste de contas. Nem vale a pena separá-los. Eles se cansarão, não passa o caso de uma palhaçada.

No quinto dia, contudo, um dos palhaços se muniu de um pau. E avançando sobre o adversário lhe desfechou um golpe que lhe arrancou a cabeleira postiça. O outro, furioso, se apetrechou de simétrica matraca e respondeu na mesma desmedida.
Os varapaus assobiaram no ar, em tonturas e volteios. Um dos espectadores, inadvertidamente, foi atingido. O homem caiu, esparramorto.
Levantou-se certa confusão. Os ânimos se dividiram. Aos poucos, dois campos de batalha se foram criando. Vários grupos cruzavam pancadarias. Mais uns tantos ficaram caídos.
Entrava-se na segunda semana e os bairros em redor ouviram dizer que uma tonta zaragata se instalara em redor dos dois palhaços. E que a coisa escaramuçara toda a praça. E a vizinhança achou graça.
Alguns foram visitar a praça para confirmar os ditos. Voltavam com contraditórias e acaloradas versões. A vizinhança se foi dividindo, em opostas opiniões. Em alguns bairros se iniciaram conflitos.
No vigésimo dia se começaram a escutar tiros. Ninguém sabia exatamente de onde provinham. Podia ser de qualquer ponto da cidade. Aterrorizados, os habitantes se armaram. Qualquer movimento lhes parecia suspeito. Os disparos se generalizaram.
Corpos de gente morta começaram a se acumular nas ruas. O terror dominava toda cidade. Em breve, começaram os massacres.
No princípio do mês, todos os habitantes da cidade haviam morrido. Todos exceto os dois palhaços. Nessa manhã os cômicos se sentaram cada um em seu canto e se livraram das vestes ridículas. Olharam-se, cansados.
Depois, se levantaram e se abraçaram, rindo-se a bandeiras despregadas. De braço dado, recolheram as moedas nas bermas do passeio. Juntos atravessaram a cidade destruída, cuidando não pisar os cadáveres. E foram à busca de uma outra cidade.
“Estórias Abensonhadas” (Por Mia Couto, Editora Caminho, Portugal, 2002)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Fotomontagem (Scott Mutter)

Fuçando no blog "atrilha", do Tuco Egg, achei esta fotomontagem de Scott Mutter. Concordo com o Tuco Egg ... a igreja deveria ser assim ... para o lado de fora.

 Fotomontagem de Scott Mutter | photographymuseum.com
 


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Coisa de criança (Ed Renè Kivitz)


Por onde Jesus passava era possível ver crianças correndo em volta e se misturando na multidão. Os discípulos tentaram impedir que as crianças se amontoassem no colo de Jesus. Achavam que Jesus tinha coisa mais importante para fazer do que dar atenção às crianças, mas acabaram descobrindo que não apenas as crianças gostavam de Jesus, mas Jesus também gostava das crianças. Numa dessas ocasiões, Jesus pegou uma criança no colo e deixou muito claro que quem não se torna igual a uma criança não pode entrar no reino dos céus, pois o reino dos céus pertence aos que são semelhantes às crianças [Mateus 18.1-5; 19.13-15]. Naquele dia as crianças se tornaram um padrão para a espiritualidade cristã.
Evidentemente, Jesus não pretendia que nos tornássemos iguais às crianças em todas as dimensões da infância. As crianças, por exemplo, não sabem o que é a gratidão, pois não têm noções de medidas abstratas. Não têm condições de avaliar o que é feito por elas, não sabem quanto sacrifício é necessário para que sejam cuidadas e não têm critérios para os custos da dedicação dos pais ou o valor das coisas que são oferecidas a elas. Por isso é que os pais vivem dizendo “diz obrigado para a titia”, “já disse obrigado para o vovô?”, pois se não o fizessem, as crianças simplesmente pegariam o presente e sairiam correndo para brincar. As crianças também não têm noções de tempo, distância e volume. Por isso é que usam palitos de fósforo para marcar quantos dias faltam para o passeio no zoológico, numa viagem longa perguntam de cinco em cinco minutos se está chegando, e de noite, antes de irem para a cama, abrem os braços e dizem com aquele sorriso lindo “mamãe, eu te amo desse tamanho assim”.

As crianças também estão absolutamente fora das categorias sociais de valores e importância. Tratam o general com a mesma displicência com que tratam o zelador do prédio onde moram, e falam as maiores barbaridades quando percebem algo inusitado em algum adulto que pretende conquistar sua simpatia, deixando os pais ruborizados e constrangidos. Elas não sabem quem é importante e quem não é. Elas ainda não foram contaminadas com os paradigmas do mercado, que valora pessoas de acordo com posição social, conta bancária, ou potencial de favorecimento e trocas de favores. Não fazem a menor ideia, por exemplo, de que é preciso um sorriso de plástico para o senhorio que chegou para tratar do aumento do aluguel, ou demonstrar especial apreço ao chefe que veio para o jantar. Isso significa que uma criança jamais perguntaria para Jesus “quem é o mais importante no reino dos céus?”, pois não lhes passa pela cabeça que um ser humano pode ser maior ou menor do que o outro em termos de valor intrínseco – aliás, nem imaginam que exista ou o que seja esse tal de “valor intrínseco”.

A exortação de Jesus aos seus discípulos sublinha exatamente esses traços próprios das crianças: o absoluto despojamento das disputas de poder e a absoluta ignorância a respeito das hierarquias que separam os seres humanos uns dos outros, e promovem toda sorte de guerras e conflitos, que somente se justificam pela vaidade e o orgulho dos egos que pretendem se afirmar às custas da diminuição e destruição dos demais.

Como seria o mundo se todos tivéssemos o coração das crianças? Teríamos breves desentendimentos, logo seguidos de um enxugar de lágrimas e a correria reiniciada rumo à próxima brincadeira. Haveria mais cooperação e menos competição, mais perdão e menos ressentimento e ódio, mais partilha e menos acúmulo, maios brincadeira e menos agressões, mais amores e menores dores. O rabino Harold Kushner disse que as crianças perdoam rápido, e se reconciliam na velocidade da luz, pois “preferem ser felizes a ter razão”. São simples, e humildes, não se constrangem com vitórias e derrotas, pois não competem, apenas brincam. Não estão no jogo de “quem é o maior e quem é o menor”.

O reino de Deus é um reino para gente com coração de criança. Todo mundo brincando de roda, cada um segurando na mão do outro, sem restrição para quem chegar, apoteose da fraternidade universal, sob a benção do Pai, do Filho e do Espírito Santo, numa santa e bendita folia. Coisa de criança.


© 2012 Ed René Kivitz
http://ibab.com.br/blog/post/coisa-de-crianca/





domingo, 3 de fevereiro de 2013

Contingência, sofrimento e Deus (Ricardo Gondim)

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O Brasil sofre. De repente todos nos sentimos irmanados pela dor. O trauma de saber que pelo menos 232 vidas foram arrancadas prematuramente parece demais. Apesar de saber que no Brasil se faz vista grossa à legislação que previne acontecimentos como o de Santa Maria, apesar de todos os senões que evitariam tantas lágrimas, nos vemos mais uma vez diante do que a filosofia trata como contingência. Esclareço: contingência significa que há acontecimentos desnecessários. Os fatos tenebrosos não fazem parte de um encadeamento inevitável.

Afirmar que uma tragédia pode ser evitada implica em que ela não foi orquestrada por uma divindade. Na contingência fatos ocorrem sem alguma razão que os explique ou justifique, e que escaparam da engrenagem de causa e efeito. Se o teto de uma igreja cai, um avião despenca, uma boate pega fogo, é porque o mundo contém espaço para acidentes – causados por negligência, falha humana ou mecânica- e podem matar sem que se atrelem a fado, destino, punição ou plano de Deus.

Sem atinar, muitos repetem a crença de que só se morre quando chega a hora. Para que tal afirmação seja verdadeira, destino precisaria vir escrito com “d” maiúsculo, pois necessitaria de inteligência e controle para reunir em uma casa de espetáculo, avião ou ônibus, todas as pessoas destinadas a morrer naquele dia específico. Acreditar assim concede à fatalidade um poder apavorante: imaginar que jovens, seduzidos por uma orquestração oculta, entraram como gado no matadouro.

Da mesma forma, muitos tentam encadear os eventos acidentais da vida, supondo que Deus “permite” sinistros com algum propósito. Querem dizer que cada pessoa, com histórias, projetos, sonhos, viu-se arrancada da existência “porque Deus assim quis”. O objetivo de Deus seria um mistério que ninguém entende e será revelado a longo prazo?

Como ter fé em um Deus que “deixa” rapazes e moças se pisotearem até a morte? Ele utiliza eventos macabros para ensinar as pessoas a terem medo dele? Esse é o seu jeito de produzir arrependimento? Tal entendimento faria com que a biografia de cada indivíduo que se perdeu fosse descartável. Deus precisaria, inclusive, manter-se frio, desprezando as lágrimas de mães e pais. Alguns chegam a ensinar que o Divino Oleiro faz o que quer e não podemos questioná-lo. Deus mata, afoga, asfixia e dá as costas em “vontade permissiva” porque deve conduzir a macro história para a sua glória final?

Nas grandes tragédias, alguns se contentam em explicar os eventos através da doutrina do controle absoluto. Afirmam que Deus tem todo o poder e não seria difícil para ele reunir em um só lugar as pessoas que deveriam morrer. Um Deus com requintes desse maquiavelismo, não passaria de um demônio. Deus é bom. Satisfaz pensar que na divina economia Deus ainda vai compensar a morte absurdamente desnecessária de tantos jovens? Difícil explicar tal conceito aos pais, avós e parentes que sonharam em vê-los terminando a faculdade, casando e tendo filhos. Bastaria falar da vida depois da morte para consolar mais de duzentas mães acorrentadas à trágica realidade de que Alguém lhes roubou a razão de viver?

A idéia de que Deus tem um plano para cada morte se esvazia diante dos números. Aviões caem, ônibus tombam, boates incendeiam. Todos os dias incontáveis acidentes acontecem. Como explicar as balas perdidas, os erros médicos e os atropelamentos provocados por bêbados? Todos cumprem alguma ordem ou são inevitáveis?  Uma senhora de nossa comunidade caiu da laje de sua casa em construção, quebrou a coluna e ficou paraplégica. Ela fotografava a obra para que a filha lhe ajudasse nas despesas do acabamento. A mais tosca explicação que a teologia poderia dar ao seu infortúnio é que Deus tem um plano para deixá-la paralítica ou a puniu por algum pecado.

Jesus considerou em seus ensinos um mundo contingente. Contradizendo a religiosidade popular judaica, ele desconectou a queda de uma torre de qualquer desígnio divino. Não concordou com a insinuação dos discípulos de que a cegueira de um mendigo era consequência do pecado dele ou de seus antepassados. No Sermão do Monte, Cristo advertiu os seus seguidores de que mesmo alicerçando a casa sobre a rocha, eles não seriam poupados dos ventos contrários e da tempestade.

O mundo das relações, devido ao amor, precisa de liberdade, e essa liberdade produz contingência. Portanto, acidentes, percalços, incidentes, fazem parte da condição humana. O contrário seria absoluta segurança. Sem a ameaça do sofrimento, sem a possibilidade da morte prematura, não enfrentaríamos ameaça de espécie alguma. Acontece que a ausência da contingência nos desumanizaria. A consciência do risco de adoecer e a imprevisibilidade da morte súbita, embora angustiantes, são o preço que pagamos por nossa humanidade. Jesus encarnou a compaixão de Deus, (compadecer significa sofrer junto), para nos mostrar que Deus sabe do risco de viver. Ele reconhece que mal e bem acontecerão no espaço da liberdade, por isso, oferece o ombro e as lágrimas. Deus não deseja que nossa vida se perca no inferno da dor.

Qualquer desastre revela a inutilidade de pensar que o exercício correto da religião ou a capacidade tecnológica bastam para anular a contingência. A vida será sempre imprecisa e efêmera. Diante da possibilidade do sofrimento, aprendamos a chorar com os que choram.
Soli Deo Gloria

http://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/contingencia-sofrimento-e-deus/




segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A maior tragédia de nossas vidas (Poesia de Fabrício Carpinejar)


Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu? Morri na Rua dos Andradas, 1925. Numa ladeira encrespada de fumaça.
A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul. Nunca uma nuvem foi tão nefasta.
Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia. Seguirá sozinha, avulsa, página arrancada de um mapa.
A fumaça corrompeu o céu para sempre. O azul é cinza, anoitecemos em 27 de janeiro de 2013.
As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte nunca mais será controlada.
Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa.
Morri porque já entrei em uma boate pensando como sairia dali em caso de incêndio.
Morri porque prefiro ficar perto do palco para ouvir melhor a banda.
Morri porque já confundi a porta de banheiro com a de emergência.
Morri porque jamais o fogo pede desculpas quando passa.
Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram.
Morri sufocado de excesso de morte; como acordar de novo?
O prédio não aterrissou da manhã, como um avião desgovernado na pista.
A saída era uma só e o medo vinha de todos os lados.
Os adolescentes não vão acordar na hora do almoço. Não vão se lembrar de nada. Ou entender como se distanciaram de repente do futuro.
Mais de duzentos e quarenta jovens sem o último beijo da mãe, do pai, dos irmãos.
Os telefones ainda tocam no peito das vítimas estendidas no Ginásio Municipal.
As famílias ainda procuram suas crianças. As crianças universitárias estão eternamente no silencioso.
Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu.
As palavras perderam o sentido.